Agricultores do MST pedem reassentamento no RS devido a enchentes sucessivas

Na manhã do dia 2 de maio de 2024, enquanto as chuvas colocavam o Rio Grande do Sul em alerta, o produtor de arroz Carlos Freitas, 55, e a esposa, Roselaine, 53, saíram de casa só por precaução. Quando a água começou a subir mais, à tardinha, Carlos voltou para buscar os animais de estimação e os encontrou mortos, boiando onde antes costumava ser sua sala.

“Nós adoecemos de ver as coisas assim. [As inundações] vão nos afetando”, diz Carlos, que enfrentou ao menos oito alagamentos desde 2002 e, nos últimos dois anos, perdeu toda sua safra de arroz orgânico. Em 2025, afirma, não vai plantar por causa do medo de perder o investimento de ao menos R$ 12 mil por hectare novamente.

O casal faz parte do grupo de 11 famílias do assentamento do MST (Movimento Sem Terra) Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul (RS), que pede para ser realocado em outra região devido às constantes enchentes. A colônia agrária, que tem cerca de 70 famílias, é composta por terrenos de diferentes alturas em relação ao rio, sendo aqueles mais próximos os mais prejudicados.

Apesar de a cada três ou quatro anos as 11 famílias perderem suas produções agrárias, a primeira vez que a água chegou em suas casas foi em novembro de 2023 e, depois, em maio de 2024 —quando cobriu toda a cidade de Eldorado do Sul.

“A água sempre vinha e não chegava [nas casas], mas a gente vem observando que a cada enchente há um grau de elevação”, diz Daniel Audibert, 57, agricultor de hortaliças orgânicas.

Um estudo do grupo de cientistas World Weather Attribution, publicado em junho do ano passado, mostrou que as mudanças climáticas aumentaram em duas vezes a probabilidade de ocorrência das chuvas históricas que causaram as enchentes no RS, enquanto as falhas na infraestrutura do estado pioraram os danos.

Segundo Daniel, desde 1999 há um plano para o reassentamento das famílias, que estão em uma área de preservação ambiental. “A gente parou a produção por três anos, porque seríamos realocados, mas foi só conversa fiada”, diz.

Antes, cerca de 33 famílias pediam o reassentamento. Com o tempo, foram desistindo. Após a inundação maior no ano passado, ficaram 23. Mas, com a demora para que algo se concretizasse, passaram para 18 e, depois, restaram as 11 famílias que moram na mesma rua, alagada constantemente.

Em julho, o grupo acampou em frente ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em Porto Alegre, junto a demais assentados do MST. O reassentamento foi uma das pautas da manifestação, desmobilizada após o governo estadual apontar um local que seria usado para cumprir a antiga promessa.

“Na época, a gente fez toda a negociação e se reuniu com o governador Eduardo Leite [PSDB]. Eles tinham sinalizado que seria na Estação Experimental de Taquari, mas foi só para voltarmos para casa”, critica Daniel.

As famílias tiveram dificuldade de acessar o auxílio reconstrução oferecido pelo governo federal, de R$ 5.000. Daniel conseguiu depois da quinta tentativa e recebeu no final de outubro. Não conseguiram, porém, o auxílio estadual, no valor de R$ 2.000. A ajuda financeira recebida para que as famílias se restabelecessem veio principalmente das campanhas coletivas de doação ao MST, que tem 344 assentamentos no RS.

“Só no trator que ficou embaixo da água eu gastei R$ 8.000”, diz o produtor de arroz Gilson Batistela, 54, que também não pretende plantar neste ano. A safra de arroz, explica, é colhida apenas uma vez ao ano e, se houver alagamento, todo o investimento feito é perdido.

O arroz plantado no assentamento precisa de água para crescer, mas uma quantidade muito grande impede seu florescimento. O MST estima ter perdido cerca de 10 mil toneladas da produção de arroz orgânico, principal cartão de visitas da política agroecológica do grupo.

“Como é que vai investir? Com que ânimo, com que segurança? Quem nos garante que na próxima não será pior? Os rios já estão cheios de areia, de terra, sujeira, então a tendência é, se der bastante chuva, a água subir mais rápido”, diz Miria Batistela, 56.

Para pagar as contas e garantir a sobrevivência, Gilson tem trabalhado com o trator nas terras de outras pessoas que ainda têm recursos financeiros para investir na plantação. A esposa de Daniel, a agricultora Lucia Audibert, 54, começou a fazer faxina duas vezes por semana na cidade.

“A enchente ainda não passou para nós”, diz Alice Audibert, 25, agricultora e mestranda em desenvolvimento rural.

“E talvez no ano que vem ela ainda não tenha passado, porque as famílias não terão conseguido voltar para a produção do arroz, os produtores das hortas não vão ter conseguido pagar as dívidas que acumularam com as enchentes, aqueles obrigados a trabalhar fora já não estão conseguindo estabilizar seu lote em casa.”

Carlos e Roselaine também passaram a trabalhar fora da agricultura para garantir a subsistência. Segundo Carlos, se quisessem continuar a plantar arroz, precisariam de um investimento entre R$ 12 mil a R$ 15 mil por hectare, recurso que seria adquirido por empréstimo e, caso houvesse uma enchente e não pudessem pagar, viraria uma dívida.

Na casa com paredes rachadas e manchas de lama, o casal diz que não tem vontade de fazer nada para recuperar o terreno em que estão assentados desde 1992.

“Ficamos com o psicológico tão abalado que cansamos”, diz Roselaine, para justificar não ter recolhido todo o lixo do terreno ou mesmo tentar recuperar as louças que foram parar no quintal. “Limpamos o que conseguimos e aí fomos esmorecendo.”

No teto da sala, ainda há a marca de um botijão de gás, que boiou durante os dias em que a água ocupou a maior parte da casa.

Roselaine e Carlos só se animam quando falam da possibilidade de reassentamento. “É o que nos mantém ainda vivos, com esperança, sabe? Temos sonhos, planos para o que vamos fazer lá. Ficamos sentados pensando e planejando como vamos fazer nossa casinha”, diz Roselaine.

Procurado pela Folha, o Governo do Rio Grande do Sul afirmou, em nota, ter um plano para reassentar as famílias, mas que ele depende do governo federal. No último dia 9, o governador em exercício Gabriel Souza (MDB) entregou ao ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, um ofício com a proposta de trocar uma área estadual no município de Santana do Livramento por uma área federal próxima do assentamento em Eldorado do Sul.

Se a permuta for aceita, serão realocadas 18 famílias para a área próxima do assentamento. Integrantes da comitiva do governo federal sugeriram, porém, a compra de um terreno com recursos do Fundo do Plano Rio Grande ou do Fundo de Terras do RS. Não há um plano para se as propostas não forem aceitas.

O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.

noticia por : UOL

28 de fevereiro de 2025 0:59